Outubro 8, 2018
O segundo turno da campanha de 2018 começa com uma constatação desoladora. Na sete eleições realizadas pelo sistema de dois turnos, que passou a funcionar em 1989, após a democratização, as viradas nunca ocorreram. Ainda assim, é possível pensar numa vitória de Fernando Haddad, vencido no primeiro turno por Jair Bolsonaro por uma diferença de 46,7% dos votos contra 28,3%.
Em pelo menos duas ocasiões, o segundo classificado na primeira fase esteve próximo de mudar o jogo. Uma dessas ocasiões tem pouco a ensinar para a campanha de 2018, pois não guarda a menor semelhança com o imenso esforço de resistência democrática que o país irá realizar a partir desta segunda-feira para impedir a vitória de uma candidatura ruinosa como Jair Bolsonaro.
Em 2014, Dilma terminou o primeiro turno com uma vantagem relativamente folgada, de quase oito pontos, sobre o segundo colocado Aécio Neves: de 41,5% a 33%. Na segunda fase, Dilma enfrentou uma articulação política pesada e, numa situação-limite, confirmou a vitória por uma diferença que se reduzia a pouco mais do que três pontos: 51,6% contra 48,3%.
Sabemos hoje que a quase-virada de Aécio em outubro de 2014 não teve a ver, apenas, com uma disputa nos marcos legítimos de uma campanha eleitoral. Verdade que ele ganhou musculatura graças ao apoio da candidata que chegou em terceiro lugar, Marina Silva, que lhe deu um reforço indispensável de 21, 3% dos votos –ou 22,1 milhões de eleitores. Aécio não ficou nisso, porém.
Fez da campanha um ensaio geral do golpe efetivado em abril de 2016, apenas um ano e meio depois. Retomou o jogo sujo da mídia do pensamento único e a divulgação de fake news, como a lorota de última hora sobre um delator da Lava Jata teria tomado um tiro para não revelar segredos conta o PT. Tudo falso, naturalmente.
Contando com a mobilização de fatias inteiras do Judiciário — a primeira operação da Lava Jato ocorrera no mesmo ano — e do setor da Polícia Federal abertamente anti-petista, sem falar de grande parte do empresariado, o deslocamento de votos a favor de Aécio produziu um crescimento de 15 pontos em três semanas. No início da apuração, até parecia que a vitória tucana estava assegurada. Dilma venceu, por uma diferença de 3,5 milhões. Mas desde o primeiro dia Aécio deixou claro que iria prosseguir a campanha por outros meios, produzindo o golpe contra a presidente eleita um ano e meio depois.
Com uma diferença de sete pontos, a campanha de 1989 é mais instrutiva a respeito. O final de 53% a 46%dos votos em 1989, quando Fernando Collor confirmou a vitória sobre Lula no primeiro turno, está longe de contar toda a história daquele pleito. Na véspera da votação do segundo turno, a diferença entre os dois finalistas chegou a apenas 1% no Ibope, placar que representava uma mudança colossal na disputa.
Após a contagem dos votos do primeiro turno, Collor apresentava quase o dobro dos votos de Lula — 30% contra 17%.
O novo equilíbrio eleitoral começou com uma mudança fundamental — a adesão integral de Leonel Brizola à campanha contra Collor.
Alijado da disputa por uma diferença inferior a meio milhão de votos nas urnas do primeiro turno, inicialmente Brizola chegou a imaginar que Lula seria capaz de renunciar ao segundo lugar e lhe passar a incumbência de disputar o segundo turno. Quando compreendeu que a hipótese estava fora de cogitação, Brizola assumiu uma postura de humildade e grandeza, engajando-se na candidatura de Lula de forma integral, numa decisão que, por si só, invertia o panorama da disputa. Contabilizando-se o voto dos três concorrentes, que somavam 64% do eleitorado total, a derrota por 30% a 17% do primeiro turno transformou-se num placar matemático de 30% contra 33% no início do segundo turno — a favor de Lula-Brizola.
Essa nova situação, de uma força política que conquistara perspectiva de poder, explica o crescimento geométrico de Lula. A disputa polarizava o debate político, a ponto de atrair forças democráticas tradicionais, a começar por dois honrados recém-derrotados no primeiro turno, Ulysses Guimarães, Sr. Diretas e Sr. Constituinte (4,7% dos votos) e Mário Covas (11,5%) que teve a candidatura presidencial abençoada pela Globo na reta final, em função de um eixo que pregava um certo “Choque de Capitalismo”.
A lado das adesões, que tiveram o efeito de ajudar a diminuir o tratamento preconceituoso que Lula recebia, numa época em que o adjetivo “despreparado” parecia lhe fazer companhia como uma segunda pele, a aliança com Brizola possuía a força magnética essencial. Ali se fez a diferença entre as duas fases da campanha.
A aliança atraia uma massa de eleitores desencantados com a Nova República de Sarney, num padrão muito semelhante a raiva despertada pelo governo Temer nos dias de hoje. A resistência histórica de Brizola contra a ditadura — desde os primeiros dias — combinava com a atuação de Lula na organização das greves sob o regime militar, deixava claro que a eleição apresentava uma disputa entre dois lados opostos, cada um representando uma parcela da sociedade e uma herança política clara.
Sob risco real de uma derrota, a campanha de Collor foi alimentada pelo jogo sujo da campanha, que incluiu fatos graves como:
a) a exibição, no horário político de Collor, do depoimento comprado de uma antiga namorada que tentava destruir a imagem positiva de Lula, como cidadão, lider popular e pai;
b) a edição manipulada do debate final entre os dois candidatos, numa época em que o monopólio da Globo era infinitamente mais acachapante do que hoje;
c) a escandalosa mobilização anti-Lula do empresariado paulista, cujo principal líder anunciou que 800 000 homens de negócio deixariam o país caso a vitória do PT fosse confirmada.
d) o vazamentos de informações fabricadas procurando vincular o PT ao sequestro do empresário Abilio Diniz e desmobilizar uma militância pronta para garantir a vitória eleitoral;
Imobilizado diante de um comportamento que merecia uma intervenção dura do Judiciário, após a contagem dos votos o presidente do TSE, Antônio Rezek, foi convidado por Fernando Collor a integrar seu ministério. Aceitou sem maiores conflitos.
Em 1989, o ambiente ideológico do país e do mundo era outro. A Constituição completava um ano e a democracia era um valor prezado universalmente — pelo menos da boca para fora. O muro do Berlim, símbolo do colapso dos regimes comunistas, veio abaixo em plena campanha, mas o episódio não produziu danos visíveis contra uma chapa que tinha uma identidade forte com ideias de esquerda.
Discursos de origem fascista, como aqueles que podem ser ouvidos na boca de Bolsonaro, não falavam com ninguém. A pregação de resgate da ditadura, ponto essencial de sua retórica em 2018, era impensável. Identificado como representante típico da ditadura, associado a diversas denúncias de corrupção, Paulo Maluf ficou com 8,8%. Com um discurso de extrema-direita e 15 segundos na propaganda política, Eneas Carneiro ficou em 12o. lugar e 0, 53% dos votos.
Em 2018, o ambiente é outro. Aquela vitória que parecia assegurada com o fim da ditadura encontra-se sob novas ameaças. Numa evolução perversa que culminou na deposição de Dilma sem crime de responsabilidade, o Judiciário tornou-se protagonista da eleição, com incontáveis decisões que prejudicaram o Partido dos Trabalhadores desde o início, a começar pelo voto à candidatura de Lula, completado pela proibição de suas entrevistas, um escândalo que contraria o inciso IX do artigo 5 da Constituição (“é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”).
Nesta situação, a passagem de Haddad para o segundo turno representa uma primeira vitoria numa guerra que se tornará mais dura nas próximas semanas, com traços semelhanças às grandes lutas democráticas da história de cada país. É a principal luta democrática da geração que veio ao mundo no início da década de 1980 — quando o Brasil derrubou a ditadura através da campanha diretas-já. Haddad estava lá, como presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da USP.
Em sua forma, a campanha de 2018 será um conflito casa a casa, rua a rua, bairro a bairro — no país inteiro, pela disputa de votos. No conteúdo, terá um impacto duradouro na definição do perfil no qual iremos viver nas próximas décadas. Também irá repercutir além das fronteiras, num continente no qual a vitória de Lopez Obrador, no México, representa um raro episódio de alivio e esperança numa conjuntura mundial de grandes riscos e ameaças.
Em sua irracionalidade absoluta, Bolsonaro representa um projeto cuja única meta é contrariar as leis da evolução e fazer a história humana andar para trás. Por este motivo, sua campanha não tem outro método de ação política fora da violência mais infame, da barbárie mais selvagem. Seu programa deve ser discutido com método e detalhe, para deixar claro que Fernando Haddad tornou-se o único candidato comprometido com a recuperação do bem-estar e a defesa do padrão de vida dos trabalhadores e da população explorada, ameaçados pela política econômica de Paulo Guedes-Bolsonaro, que a mídia amiga fez e fará o possível para esconder do eleitor.
A experiência de 1989 mostra que as chances de uma virada são reais, desde que a campanha de Haddad demonstre maturidade para empenhar-se na construção de uma unidade para enfrentar e vencer o inimigo principal. Na noite em que assegurou a passagem ao segundo turno, Haddad já iniciou contatos para uma aliança indispensável no segundo turno, a começar com Ciro Gomes.
O apoio dos aliados será essencial, mas não pode ser confundido com balcão de negócios. É exatamente isso que o adversário aguarda, para acusar Fernando Haddad de vender a alma para conseguir votos de qualquer maneira, vestindo-o com a fantasia de um oportunista igual a todos os outros. A disputa não se limita, portanto, a boas ideias para o país. Também envolverá uma comparação de caráter e firmeza para defender os valores e reivindicações do povo. Acima de tudo, uma população desiludida com políticos em geral, cada vez mais desconfiada, só pode acreditar num candidato a presidente que lhe pareça digno de confiança.
Um dos maiores desafios em nossas lutas democráticas, a derrota de Bolsonaro depende, mais do que nunca, da capacidade de Fernando Haddad liderar o esforço dos brasileiros e brasileiras para recuperar os votos que guardam a memória de Lula. Ele saiu do primeiro turno com 28,3 % dos votos, cesto equivalente a 2/3 das intenções de voto que Lula obteve no DataFolha de 22 de agosto, um dos últimos levantamentos antes que fosse retirado da disputa.
Primeira etapa da nova fase da campanha, a recuperação desse eleitorado vai decidir a disputa final de 27, quando a sorte de várias gerações pode ser resolvida em cada grito de esperança.