Março 19, 2018
Seu provedor de acesso à internet sabe as páginas que você visita, se fica mais tempo nas redes sociais ou assistindo a filmes e vídeos. Se costuma fornecer o seu CPF à farmácia perto de sua casa, na hora de pagar seus remédios, ela sabe, por exemplo, que a cada dois meses você compra aquele medicamento para descongestionar o nariz, o que pode indicar um futuro problema crônico nas vias respiratórias. Se utiliza bilhete eletrônico no transporte público, a prefeitura guarda os dados sobre horários e trajetos mais utilizados. Google e Facebook pedem para que a gente revele a festa em que estivemos e quem lá encontramos.
A cada momento, deixamos rastros de nossas experiências, seja no mundo virtual ou no real. Todos esses dados são devidamente armazenados, compilados, cruzados com os de milhares – ou milhões – de outras pessoas, para depois receberem o devido “tratamento”, de acordo com o interesse específico de cada agente. É a era do big data, em que essa montanha de informação coletada é processada pelos algoritmos.
Com base nesses perfis, uma empresa oferece desconto especial na reserva de hotel para a viagem do próximo feriado, o que muito agrada o consumidor. Mas ela também pode bloquear as ofertas numa determinada área – geoblocking – e elevar o preço em outra – geopricing –, conforme recente denúncia do Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) contra a Decolar.com .
Apesar de parcialmente contemplada por outras legislações, como o Marco Civil da Internet, ou até mesmo o Código de Defesa do Consumidor, a proteção dos dados pessoais ainda carece de regulamentação específica, que preserve direitos individuais e coletivos das pessoas, e que estabeleça regras transparentes quanto ao aproveitamento econômico dessas informações, com normas claras inclusive para o poder público.
Congresso – É por isso que especialistas defendem a aprovação de uma Lei Geral de Proteção de Dados que devolva ao cidadãos o controle sobre tudo aquilo que é coletado sobre si mesmos. Neste momento, dois projetos centralizam a discussão sobre o tema no Congresso Nacional e, como não podia ser diferente, são alvo de disputa entre diferentes grupos interessados.
Na Câmara dos Deputados tramita o Projeto de Lei (PL) 5.276/2016, proposto pelo Ministério da Justiça ainda durante o governo Dilma. Amplamente discutido em consultas públicas, teve o seu andamento comprometido em favor do substitutivo ao Projeto de Lei do Senado (PLS) 330/2013, elaborado pelo então senador Aloysio Nunes (PSDB-SP) e encampado pelo atual governo – e que atende mais aos interesses das empresas e do próprio Estado.
As empresas disputam para garantir “segurança jurídica” aos negócios que giram em torno da comercialização desses bancos de dados. Querem não ser responsabilizados caso seus compradores façam mal uso.
Se a rede de farmácias decidir vender as informações dos seus clientes a uma operadora de planos de saúde, por exemplo, esta última poderá estabelecer no seu cálculo algorítmico que as pessoas que fazem uso de determinadas medicações têm mais riscos de apresentar essa ou aquela doença e, a partir daí, começar a cobrar mais pelos serviços médicos prestados, ou recusar a adesão daqueles com histórico de saúde mais problemático.
Ou ainda, esses mesmas informações colhidas nas farmácias podem ser negociada com uma empresa de recrutamento que, da mesma forma, poderia através do algorítimo selecionar para as vagas de emprego os candidatos mais saudáveis.
Já o governo Temer defende que o poder público fique de fora das regras que garantem transparência no tratamento dos dados do cidadão, para que possa usá-los sem o devido consentimento, em casos que afetem a “segurança nacional”.
Segundo a coordenadora da área de Privacidade e Vigilância do InternetLab, Jaqueline Abreu, uma lei geral que proteja o indivíduo contra abusos no tratamento dos seus dados individuais é uma necessidade “muito mais que urgente”, e lembrou que diversos países, da Europa e também da América Latina, já contam legislação específica.
Desvirtuamento – Em seminário intitulado Desproteção dos Dados Pessoais, promovido nesta semana em São Paulo pelo Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) e o Departamento Jurídico XI de Agosto – ligado à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Jaqueline disse que o que mais preocupa é o desvirtuamento do uso desses dados. Colhidos com um determinado propósito, podem servir a um fim completamente diferente.
Como exemplo do uso indevido, ela citou iniciativa do prefeito de São Paulo, João Doria (PSDB), que, em viagem ao Oriente Médio, no ano passado, apresentou aos investidores, como um dos “ativos” do seu programa de privatização, o banco de dados de milhões de usuários do Bilhete Único. Legislação específica poderia coibir esse tipo de prática.
A coordenadora do Intervozes, Veridiana Alimonti, lembrou que, no mundo contemporâneo, “somos representados não pela nossa presença física, mas pelos nossos dados”, e essas combinações únicas utilizadas pelos computadores para formar um determinado perfil do indivíduo “podem ou não refletir corretamente sobre quem somos”.
É por isso que os especialistas defendem mais transparência não apenas na coleta, mas no “tratamento” que é dado aos nossos dados pelos algoritmos. Ela destacou que, principalmente, as redes sociais nos induzem a agir de uma ou de outra maneira, a partir da análise dos nossos dados. E o uso e a manipulação, por vezes, não são apenas para fins comerciais, mas também político.
Uso político – Veridiana lembrou que, durante as últimas eleições nos Estados Unidos, em 2016, de posse das informações dos usuários, o Facebook criou cinco categorias políticas – do mais liberal ao mais conservador – para facilitar a distribuição de notícias ao gosto do freguês. A rede diz que, passadas as eleições, essa plataforma não opera mais.
A partir de mecanismos desse tipo, ela diz que até mesmo um candidato poderia se apresentar com “várias faces”, adequando o seu discurso às diferentes parcelas do eleitorado, assim agradando a todos, e não estabelecendo compromissos com ninguém.
Já no ano seguinte, no processo eleitoral canadense, devido a pressões de grupos organizados da sociedade e até do governo do país, lançou recurso que permite ao usuário verificar o histórico de publicações patrocinadas dos políticos para inibir o surgimento do candidato multifacetado.
Caso Globo – A campanha da TV Globo, que pede para o espectador enviar um vídeo do seu celular falando sobre “O Brasil que eu quero” também levanta suspeitas sobre a utilização das informações colhidas. Além de dados cadastrais, nome, e-mail e CPF, a emissora poderá catalogar essa parcela da sua audiência a partir das demandas políticas expressadas e, aos moldes do que ocorreu com o Facebook nas eleições americanas, passar a entregar conteúdo jornalístico direcionado, ou seja, mais afeito às opiniões do próprio espectador – obviamente não na TV, mas nos demais serviços noticiosos da empresa, como portais de notícias e plataforma de vídeo sob demanda.
Segundo a ativista do Intervozes, esse tipo de estratégia faz com que a Globo mais uma vez “saia na frente”, em relação aos concorrentes, o que é legítimo do ponto de vista editorial e econômico, mas também cria dúvidas sobre possibilidades de manipulação em ano eleitoral, prática em que a emissora também já demonstrou know-how em inúmeros episódios nas últimas décadas.
Já a especialista do InternetLab diz que a suposta adesão voluntária pelo usuário à campanha da Globo não inibe as responsabilidades da empresa no tratamento dos dados, e criticou a falta de clareza nos genéricos termos de adesão. Segundo ela, para dirimir dúvidas, a emissora deveria informar às pessoas o que pretende fazer com todos os dados coletados, afastando assim os receios e dúvidas sobre o risco de manipulação.
Fonte: Tiago Pereira / RBA